quinta-feira, 27 de junho de 2013

O Domínio das Vargens

Autor: Dr. Vinícius Ferreira - Advogado

O status de proprietário traz ao cidadão um estado psíquico de tranqüilidade oriundo da segurança jurídica. Tal situação é tão impactante que o legislador constituinte colocou-a sob a égide constitucional elencando-o no art. 5°, em seu inciso XXII, in verbis: “é garantido o direito de propriedade”1, conferindo-lhe ainda a natureza de cláusula pétrea nos termos do inciso IV, § 4º, de seu artigo 60:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.

Logicamente, tal direito, notoriamente enraizado na manifestação de riquezas, relaciona-se com um tributo que, no caso de bens imóveis, podem ser o IPTU em áreas urbanas, ou o ITR, Imposto Territorial Rural, em localidades rurais.
A natureza, rural ou urbana da propriedade já foi objeto de análise no STJ estando este já pacificado no sentido de usar-se o critério material, levando-se em conta a destinação da propriedade, e não o formal, da pura e simples letra da lei.
Duas são as formas de aquisição da propriedade previstas no ordenamento jurídico, originária ou derivada. No caso em voga, deve-se esclarecer que, no caso dos bens móveis, a transmissão do domínio dar-se-á no momento da tradição, já no dos imóveis, com a transcrição do título aquisitivo.
Nosso ordenamento aduz expressamente tal necessidade no que tange os bens imóveis. O Código Civil de 2002 traz em seu art. 1.245 “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”.
Seu parágrafo primeiro mostra que, somente após o registro, o adquirente torna-se dono do imóvel pois, até então, o alienante o será: “§ 1o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel”.
Resta óbvio que, por inúmeras vezes, o alienante, valendo-se da inexperiência do adquirente e da falta de orientação deste, usa de má fé registrando o negócio no Ofício de Notas que, por sua vez, expede a “Escritura de compra e venda” fazendo-o crer que já é proprietário do imóvel. Aproveitando-se de tal equívoco, o alienante o faz repetidas vezes até que algum dos adquirentes efetue o registro no R.G.I.
A ação de usucapião é oriunda do princípio da função social da propriedade que, por sua vez, consiste em um dos pilares do Estado Neo-feudal. Se a propriedade não possui destinação interessante, producente econômica ou socialmente, medidas deverão ser tomadas no sentido de se buscar o equilíbrio, naturalmente, dentro da dinâmica liberal.
Tal dispositivo consiste em forma originária de aquisição da propriedade em razão da posse mansa e pacífica desta. Para tanto, o legislador destinou o art. 183 da constituição, tamanha sua importância no ordenamento jurídico brasileiro:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

A mesma redação é dada ao art. 1.240 do Código Civil vigente e complementada pelo art. 1.241:

Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1° - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2° - O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

Art. 1.241. Poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel.
Parágrafo único. A declaração obtida na forma deste artigo constituirá título hábil para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Deve-se observar que, apesar de obtida a sentença, esta, de natureza declaratória, constitui título hábil para o registro, continuando este sendo condição para a aquisição do direito de propriedade.
É de suma importância uma análise, ainda que superficial, dos chamados P.E.U.s, Projeto de Estruturação Urbana, de áreas no Rio de Janeiro como Vargem Pequena e Vargem Grande. As três ultimas legislações, Decreto 3.046/81; LC n. 79/06 e LC n. 104/09 (PLC 37/09), designam áreas mínimas para o parcelamento nessas regiões que vão de 360 m² a 10.000 m².
Não é difícil observar que, sendo a área máxima para o pleito da ação de usucapião especial urbano, de 250 m², inferior ao mínimo permitido para o registro de terrenos nestas localidades.
Diante desta situação, tal direito será inviabilizado por um indireto conflito de normas. O que mais traz assombro é o fato de uma lei municipal amputar a aplicabilidade de um direito constitucional.
Tal absurdo não é de forma alguma oriundo tão somente das férteis mentes acadêmicas, mas um desafio enfrentado diariamente nos tribunais como pode-se observar na decisão a seguir que julga procedente a ação que tem por objeto o direito de propriedade de um imóvel situado em Vargem Pequena, Rio de Janeiro:

(...) Quanto à impossibilidade de desmembramento da área onde se localiza o terreno em questão, tem-se que a ausência do desmembramento não é empecilho ao usucapião, modo originário de aquisição de propriedade, sendo perfeitamente possível reconhecer a propriedade da específica área objeto da presente ação, cabendo posteriormente à autora tomar as providências necessárias para o desmembramento do lote, a fim de obter a sua regular inscrição junto ao R.G.I.. Estão presentes, enfim, os requisitos legais que ensejam a aquisição do domínio. Em sendo assim, à vista do exposto, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO formulado, declarando o domínio do  imóvel, como requerido na inicial, valendo a presente sentença como título para transcrição no Registro de Imóveis, ressalvadas as providências necessárias ao desmembramento. Após o trânsito em julgado, expeça-se mandado ao Oficial do Registro de Imóveis competente, para transcrição da sentença, uma vez satisfeitas as obrigações fiscais, nos termos do artigo 945 do Código de Processo Civil.(...) (PEDRO ANTÔNIO DE OLIVEIRA JÚNIOR - Juiz de Direito. Processo n° 99.001.094280-5)

A jurisprudência, apesar de tímida, já apresenta decisões, no caso supracitado, acórdão unânime, desconsiderando o dispositivo municipal face à óbvia inaplicabilidade da sentença:

ACÓRDÃO:
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível de n° 26.035/06, em que figura como apelante Denize Vieira do Prado e apelado Espólio de Manuel Gomes de Faria.
Acordam, por unanimidade de votos, os Desembargadores que compões a Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em dar provimento ao recurso para determinar o registro da sentença declaratória de usucapião do Cartório de Registro de Imóveis sem qualquer ressalva.
Rio de Janeiro, 19 de setembro de 2006.
DES. MARIA HENRIQUETA LOBO
PRESIDENTE E RELATORA

Note-se que, no acórdão supracitado, decidiu-se no sentido de ignorar a norma municipal valendo-se da equidade para sustentar tal posicionamento. Apesar de frágil, somente o poder judiciário manifesta preocupação em relação ao conflito observado e tal prudência se dá tão somente pela obrigatoriedade de sanar os conflitos sociais que lhe são apresentados. Não obstante, fora dos tribunais, o Estado jaz inerte frente a tal situação. Deste modo, alguém que se encontre de posse mansa e pacífica há mais de cinco anos de um terreno de 250 m², perfeitamente enquadrado nos termos dos arts. 183 da CR, e 1.240 do Código Civil, apesar de conseguir a sentença deferindo o pedido, usucapindo o imóvel, chegando ao balcão, feliz, com a sentença nas mãos, não conseguirá efetuar o registro no Cartório.
Este cidadão, primeiramente sentir-se-á descrente da aplicação das leis, então questionará a efetividade das sentenças proferidas pelo poder judiciário choramingando seu sentimento de quem “ganhou, mas não levou”.
Por último, tomado pela cólera, bradará, em vão, que paga seus impostos.
Urge o dia em que o poder público descobrirá que a forma mais simples de se perder poder é criar normas sem aplicabilidade. Até lá, o adquirente, ciente de tal disparate, não buscará uma solução legal, mas optará, ou pela informalidade, ou por passar o problema adiante, vendendo o imóvel.

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